domingo, 4 de dezembro de 2016

Vapor

No banho - quente, não importando o calor da estação -, cabeça baixa, braços cruzados, subjugado pelo açoite da água escorrendo pelos cabelos e corpo, perdia-se na correnteza louca daquele rio artificial.
Ocorria-lhe ainda a pergunta tola de qual curso d'água tivera sido profanado para que a torrente que outrora dera forma a um leito viesse parar ali, cuspida em múltiplos fios sob o rigor da ducha sobre sua cabeça. Outros lampejos insistiam em trespassar sua mente virgem, mas lavados pela água, também desapareciam pelos inúmeros furos daquele buraco cromado sob seus pés.
Ao levantar os olhos, acuado pelas brumas daquele Avalon, a folha retangular do blindex surgia como um quadro mágico a possuir seus pensamentos. Escrevia parágrafos de cima a baixo, Kerouac de chuveiro, até que terminasse a página ou o topo já estivesse coberto novamente pela maré da água em condensação.
Em seu prazer asséptico, não tinha certeza de quanto escrevera. Pelas lembranças das histórias, ainda que esparsas, calculava terem sido muitas. Perdia-se hora, hora e meia na route 66 daquela suíte até que algum o tirasse do transe com uma verdade mundana feito a conta da água, da luz, ou lhe causasse enjoo com um clichê politicamente correto vindo as vezes na voz estridente do filho mais novo a vociferar verdades irrefutáveis do alto de seus 16 anos de hegemonia cultural do ensino médio. Sentia-se injustiçado, um Dante Alighieri interrompido na concepção do Sétimo Círculo e do Vale do Flegetonte, sem Beatriz nem Virgílio para nortear seus passos.

Como tantos, porém, a glória efêmera durava o tempo do fog do banho. Trazido de volta, fechava o rio e apertava a toalha contra o rosto e olhos num último suspiro antes do despertar da rotina.
Pronto. Estava de volta. A roupa do escritório, o perfume caro do duty free comprado antes pelos auspícios da vendedora que pelo olfato fugidio oriundo de uma sinusite recorrente na juventude transformavam-no em seu pior pesadelo. Detestava ser só ele mesmo, diariamente. E aos poucos as loucas histórias de seus livros de blindex sucumbiriam à massante realidade dos afazeres diários, o trabalho, a vida moderna.
Caminhava até o escritório na intenção última de retardar o reencontro com a realidade. 35, 40 minutos de passos cruzando gentes e ruas ainda como o Mitty de si mesmo, mergulhado em seu multiverso ainda livre para ser o que quiser, estar em qualquer lugar, até que a fachada do prédio do escritório ou as gotas do suor oriundas do verão e caminhada escorressem pela fronte e o arrancassem do coma ao final da jornada.

No mais, um pouco mais do mesmo. Vida opaca pelo badalar da prisão da qual não soubera fugir tornando-se assim apenas um a mais, como tantos, iguais, irrelevantes. E embora não carregasse mais a utopia pueril de mudar o mundo, menos ainda a sandice marxista das ideologias, sabia da verdade e aceitava-a, mesmo que através das histórias e seus livros de blindex.

E amanhã com certeza, um outro dia, uma outra história. Sim, era apenas ele mesmo, um homem simples, nem mais, nem menos.

Todos, tantos, também o eram, em todo lugar, todo o tempo. Mas estava só, `a deriva.