quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A volta do guará... ou: Missiva


Para Tusta... pai segundo.

Entre nossa penúltima e última vez muita coisa mudara. O pomar, a horta, as flores, a grama, as novas construções da fazenda. 
No entanto, duas permaneceriam perturbadoramente inertes, soltas em nossa órbita como se 1 ano, 365 dias não fossem suficientes para transladar um estado de espírito, trazer o inverno de uma opinião do estio...

A primeira fora definitivamente nossa perspectiva dicotômica acerca de nossas escolhas... racionalismo ou fé, realismo ou idealismo, multiculturalismo ou antropofagia, xenofilia ou chauvinismo, conservadorismo ou progressismo... 
Nesse ponto, considerei - como de costume - positivos nossos embates. Afinal, lembrando o bendito "maldito" Itamar Assumpção cheguei até mesmo a cantarolar mentalmente,
"(...)Aprendi que viver cansa, mesmo vivendo na França
Mesmo indo de avião
Aprendi que a desavença é por que sempre alguém pensa 
Que ninguém mais tem razão
Aprendiz de feiticeiro
Aprendiz de feiticeiro
Aprendi que tudo passa, tomando chá ou cachaça
Tomando champanhe ou não..."

Diferenças eram naturais e pautariam para sempre o que nos tornava... indivíduos, únicos.

Porém, a segunda despertara nele a mesma reação, a mesma dor de um ano antes. Abateu-me... 
  
(...)

Nada sabia... nem nutria pretensão alguma de tornar-me um cordeiro de Deus como minha mãe... fosse por mérito ou arrogância. Ao contrário, soubera sempre foi da miopia e insignificância que me perpassavam, ainda que fizessem de mim não mais que um errante crivado de dúvidas. Desconfiava mesmo ser capaz de remir os erros todos, um dia.

Ainda assim, num rompante indignado, eximi-o da culpa asfixiante, da dor que carregava pelo desacerto do qual não fora a causa nem o meio, da responsabilidade, enfim. Fazia isso ainda que soubesse ser ninguém autorizado a remir vícios, reaver almas cansadas, combalidas. Naquele instante, absorvia sua dor, digeria sua culpa e sabia, não a merecia... Não aquela, disso tinha certeza.
Lembrava ao mesmo tempo que tal sentimento fizera de minha mãe um zumbi insone, mera escrava autoencarregada da expiação dos pecados do "mundo" - ou dos outros. No entanto, com ela qualquer diálogo teria sido absolutamente impossível.

   Sabia... 
   Até certo ponto, todos somos responsáveis por nossas escolhas. 

(...)

Não citando o autor, retirando assim a possibilidade de julgamento ad hominem, enviei-lhe a missiva e pedi que lesse.

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Thomas Sowell dizia: “Nunca entendi por que é ‘ganância’ você querer conservar o dinheiro que ganhou, mas não é ganância querer tomar o dinheiro dos outros.” Mutatis mutandis, a obrigação moral que os ricos têm de ajudar os pobres, mesmo quando seja tomada em sentido absoluto e intransigente, não implica jamais que os pobres tenham o “direito” de ser ajudados.
Todo direito de um implica obrigações para algum outro, mas nem toda obrigação que pese sobre alguém gera direitos para quem quer que seja.
A razão disso é simples e auto-evidente: toda e qualquer obrigação moral ou legal é relativa porque limitada à disponibilidade de meios, ao passo que um “direito”, uma vez consagrado, é universal e incondicional. Decretado que os pobres têm “direito” à ajuda estatal ou privada, a simples inexistência dos meios de ajudá-los se torna automaticamente algo como uma ilegalidade ou um crime, e a sociedade inteira, quanto mais pobre, tanto mais merecerá o rótulo de criminosa, de modo que a pobreza de uns será uma espécie de mérito e a de todos um delito abominável. Se isto está muito sintético, analisem e verão que é certo.
 Da incompreensão dessa obviedade deriva a noção monstruosamente perversa de que uma sociedade onde haja pobres, ou muitos pobres, é uma “sociedade injusta”. Em princípio, e à luz da razão, toda obrigação moral ou legal está condicionada à regra áurea do Direito: Ad impossibilia nemo tenetur, “ninguém é obrigado ao impossível”. Por isso mesmo a obrigação de ajudar os pobres não dá a estes nenhum direito de exigi-la. A absurdidade dessa exigência aparece nítida no delírio de Luís da Silva no romance Angústia de Graciliano Ramos:
“Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.”
E Luís da Silva não é nenhum burguês atemorizado ante a revolta dos infelizes. É ele mesmo um pobretão ressentido, sem dinheiro para o aluguel. Só no mundo das alucinações a pobreza é, por si, fonte de direitos.
Antigamente, até os marxistas compreendiam isso. Julgavam que o proletariado industrial tinha o direito de expropriar a burguesia não pelo simples fato de ser pobre, mas por ser o criador material da riqueza social. A horda de miseráveis improdutivos, o Lumpenproletariat, não lhes merecia senão desprezo. É o óbvio dos óbvios: ninguém se torna um “expoliado” pelo simples fato de estar sem dinheiro. Para ser um expoliado é preciso produzir primeiro alguma coisa e depois ser despojado dela injustamente. Como o proletariado se recusou a aderir às revoluções, os teóricos do marxismo promoveram a escória lumpenproletária ao estatuto de credora universal e portadora, ipso facto, da autoridade intrínseca das virtudes morais faltantes ao resto da sociedade. Daí ao endeusamento dos delinqüentes o passo é bem curto.
Da insensibilidade a esses fatos vem a noção de “dívida social”. Qualquer candidato que proponha a sua eleição como o pagamento de uma dívida social é, com toda a evidência, um charlatão do qual não se pode esperar nada de bom. Se a dívida existe e é social, não pode ser jamais resgatada mediante pagamento a um só indivíduo. O fato mesmo de que este se apresente como credor simbólico, herdeiro e resumo vivo de várias gerações de interesses lesados, já mostra que se trata de um vigarista, pois nem aceita pagamento simbólico nem tem como repassar o pagamento efetivo aos credores defuntos de cujo crédito se apropria indevidamente.
Todo eleitor em seu juízo perfeito deveria pensar nisso antes de votar em tipos como Luís Inácio Lula da Silva ou Barack Hussein Obama. Mas, tão logo a pobreza se torna fonte de “direitos”, é inevitável que o carreirista desprovido de méritos próprios se invista de prerrogativas imaginárias derivadas da pobreza alheia, impondo-se como recebedor único da “dívida social” -- um vigarista elevado à segunda potência. [1] 
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Ao final pontuei: sabia que não negaria ajuda... nunca. Como minha mãe, permaneceriam pra sempre subjugados ao sangue e ao fervor cristão... ou ao superego. Aquilo dava-me certa inveja até, afinal, nunca tivera tal pretensão, preso à minha insípida pequenez mundana.

Sabendo que a culpa não lhe cabia, cabia menos ainda em minha mãe, pedi-lhe que se livrasse dela, que voltasse por mim a procurar o lobo guará da mata, cuja presença não sentia mais ali.

Era aquilo ou eu mesmo me afogando em culpa, sem beira, incólume como se tivesse apenas uma pedra no peito.
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[1] Olavo de Carvalho [in: Duas Notas], Diário do Comércio, 8 de janeiro de 2013.