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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Primeiro! Último capitulo!!!!

Frequentador dos Sebos da cidade tornara-se uma espécie de vizinho dos funcionários, desses a quem se dispensa uma reverência e pergunta-se da família, en passant.
Passava horas entre as prateleiras perscrutando temas, de Química a Magia, da Filosofia à Música; e desenvolvera um ar distante, após certo tempo, como desplugado do mundo fosse um caminhante estrangeiro por nações de estantes que falavam línguas e endereços diferentes.
O movimento e as pessoas ao redor já não importavam. Tudo fazia parte da paisagem, familiar e repetitiva. Não era ele próprio um incômodo para os funcionários. Assimilado como um móvel, uma estante ou livro do lugar, passava na maioria das vezes despercebido.
Também sem perceber, antes de deixar a loja sem concluir a compra de livro algum, lera por horas a fio. Outro dia e o mesmo ritual: engatava a leitura do lugar exato de onde parara da última vez. Todavia, não conseguiria explicar exatamente porque era capaz de fazê-lo, especialmente porque era comumente traído pela memória ao ser indagado sobre um estúpido número de telefone ou até mesmo seu endereço. 
Mecanicamente digitaria os números de casa no telefone sem pensar sobre isso. E é certo que chegaria em casa até vendado, antes de pronunciar uma palavra acerca de seu logradouro.
Não obstante, ainda se surpreendia com aquele seu talento, nas poucas vezes em que pensava nisso.

Quando criança costumava trancar-se no banheiro de casa e apagar a luz. Sentia-se inatingível  e mergulhava num limbo onde viajava por universos e galáxias
- Valter, sai dai. Tem mais gente aqui querendo tomar banho pô!
E despencava subitamente da dimensão por onde flutuara segundos antes, tragado para o mundo surreal daquele bairro de subúrbio onde morava com a família de sete pessoas.
No único lugar da casa onde fronteiras eram respeitadas, tirava a solidão pra dançar e exercitava passos de tango, valsa... 

(...)

Um dia como outro qualquer. Entrou no Sebo da rua Marechal Deodoro e cumprimentou o gerente.
- Buenas!!!
Gostava de falar cacos de outras línguas.
Também sem saber explicar bem como, aprendera o inglês, o francês, o italiano e o alemão, além do espanhol. Leu Heidegger e o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein em alemão;  e convicto, concluiu que só poderia mesmo ter sido assim.   
Leu Russell e Swift em inglês e O Estrangeiro em francês. Cervantes, claro, em espanhol. Como explicar? Não podia. Nem mesmo recordava claramente quando desatara a estudar cada uma daquelas línguas. Só tinha a certeza de que tudo começara da motivação e avidez em decifrar os signos de autores cujos nomes o fascinava. 
Assim o Inferno e a Divina Comédia, assim Marcel Proust, Voltaire, assim Jack Kerouac, Shakespeare. Assim Hannah Arendt, Goethe, assim Cartas a un escéptico en materia de religión de Balmes. Absorto navegava por entre mares sem fim de letras.
Porém, naquele dia tudo estava fadado a um inesperado desfecho.

Não sei porque alguém assaltaria um Sebo. Essa é ainda uma pergunta sem resposta.
Fato é que por volta das 5 da tarde, e ele perdido na prateleira de filosofia perto do balcão de atendimento, não notou a movimentação e gritaria. Dois homens - mais ou menos nos seus 20 anos - entraram de arma em punho gritando voz de assalto. Ambos muito violentos, pareciam drogados. Ou talvez apenas sádicos, porque agredindo prazerosamente quem estava ao alcance das ameaças e à distância do braço e coronha da arma. Duas, três pessoas, dentre elas o gerente desabaram no chão pelo caminho com cortes na cabeça ou rosto e pequenos vertedouros de sangue.

Valter distraido estava, distraído permaneceu. Impassível. Àquela altura encontrava-se emaranhado entre as considerações da obra de Hume, A Treatise of Human Nature. Não ouvira nem vira nada nem ninguém.

Confusão, agressões, um dos assaltantes, o mais alto, do cabelo desgrenhado, voltou-se para Valter e disse-lhe ironicamente algumas troças.
Sem retorno ou reação, todavia, vociferou num crescente mais ofensas, a voz, os gestos, apontando a arma erraticamente para todos e cada um, ao mesmo tempo.
Valter... não estava ali. Era um autista, em transe no enlightenment de Hume.
Alvoroço, sirenes, os ladrões tomaram o dinheiro do caixa e, desorganizada e brutalmente pegaram o mais que puderam que servisse - provavelmente - para ser trocado por minúsculas pedras de crack. Enfiaram tudo numa sacola plástica branca.
Antes de sair, porém, o desgrenhado e mais ofendido deles resolveu acertar as contas com a arrogância e coragem daquele, que era Valter. Apontou e sarcasticamente convidou-o a desviar-se da bala.
"- Chupa essa ameixa!!! "
Sem resposta... um rebenque.

Sexta-Feira, 18 de Setembro de 2009, 17:13.
Valter desabou manso, em silêncio mortal. Como a primeira torre do World Trade Center num 11 de Setembro, colapsou verticalmente com a dobradura dos joelhos o projetando levemente para frente.
E já inclinado em direção à estante de filosofia, com a fronte perfurada encostada na prateleira de baixo inundando os livros de Marx, Maquiavel, Sade, com seu sangue vermelho, ainda pude vislumbrar o Livro 3 de Hume, "Da Moral", aberto em ´Of Greatness of Mind´, ao lado de sua mão direita, já inerte.
"Como um cão..."(1)
Não mais as letras, não mais os livros, a ignorância vencera... sem pergunta, sem debate...

________________________
(1) O Processo - Franz Kafka, 1925

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

"Filosofada"

Sempre achei que as coisas acontecessem comigo de uma forma um tanto ordenada, como se um acontecimento por mais desejado que fosse só viria por ordem, subsequente a outro - seu pré-requisito, mesmo contra a minha vontade.
Todavia, essa visão mística não encontra lastro em minhas convicções, uma vez que prefiro a luz da ciência ao obscurantismo metafísico, embora Hume ou Russell às vezes me tragam mais dúvidas que certezas acerca da causalidade.

Tirando o fato de que você nasce primeiro, cresce, depois morre, exatamente nesta ordem, não vejo outra lei determinante ao nosso destino.
Paradoxalmente, me conforta imaginar que as coisas aconteçam somente na hora em que deveriam acontecer. E isso não diminui o fato de considerar essa uma visão medíocre, calcada na acomodação e indolência, na maioria das vezes. Presta-se no máximo a manter você em paz consigo mesmo, evitando uma guerra interna cujas consequências poderiam ser desde a depressão e ceticismo a uma tentativa insana de transmutar-se no arquétipo do “homem de sucesso” moderno.
Não, obrigado!!!

Compreendi minhas limitações e persisto ultimamente em tentar dar-lhes uma justificativa plausível, uma espécie de salvo conduto contra as opiniões contrárias.
Pensar já é um ato de diferença. A maioria de nós não pensa porque o mundo é do jeito que é e nem porque nos dedicamos a fazer as coisas que fazemos todos os dias, repetidamente.

(...)

Ai, diante da TV vejo as notícias que trazem invariavelmente o mesmo tempero, a mesma receita: “ânsia de aquisição”, “vaidade”, “rivalidade” e a “paixão pelo poder”1. Confesso um tédio abissal, embora veja nas leis acima, não sem tristeza, algumas das molas propulsoras da minha própria existência...até agora.


Porém, diante da complexidade filosófica do tema e de minha restrita capacidade intelectual, recorro novamente à indolência do fatalismo clichê de que a vida seria mesmo assim, de qualquer maneira. É mais cômodo, por hora, não pensar porque as coisas aconteceram dessa e não daquela maneira.
E me refugio de novo na doce guarita das realizações artísticas, essas das quais as explicações não explicam, e nem acrescentariam nada de útil.
Ouço “Saudade da Guanabara”2 e mergulho no refrão “Brasil, tira as flechas do peito do meu padroeiro, que São Sebastião do Rio de Janeiro, ainda pode se salvar...” pra fugir do ceticismo que me espreita ultimamente, agravado sobremaneira pelo horário eleitoral.
 
Sem esperanças...



(1) Bertrand Russell’s Best - 1958
(2) Saudade da Guanabara, Moacyr Luz, Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro