Barragem das Almas

Capítulo I

Era estranho aparecer subitamente naquele lugar. Lembrava-se vagamente do carro, da viagem, mas de resto, a mesma pergunta a martelar sua memória: como viera parar na Barragem das Almas?
Notou com estranheza pessoas e línguas que não faziam sentido ali, embora pudesse entendê-las todas. Nunca estudara francês, ou inglês, ou tcheco ou húngaro, e ainda que não pudesse identificar separadamente cada uma, causava-lhe perplexidade e satisfação como as compreendia todas agora. Não eram sua língua materna, todavia.

Alguém trajando a indumentária do Exército Real Francês do Século XIX conversava efusivamente com um bonachão careca a soltar baforadas preguiçosas de seu charuto. A gravata borboleta e o chapéu Bowler pendendo da mão esquerda carregavam-lhe ainda mais a fachada de fastio.
Duvidou tratar-se de Napoleão a insultar Winston Churchill em francês, cuja reação lembrava mais uma criança a divertir-se com bolhas de sabão, embora no caso desse fossem mais halos de fumaça como num fog oriundo do cubano com a ponta em brasa. Seu tédio abissal com os arroubos sobre estratégia militar vindos do oponente forçara-lhe a um quase monossilábico Waterloo, perdido entre as baforadas do charuto e o descaso do olhar vago para a margem oposta do Fanado. E o francês pareceu contorcer-se sob a urticária da ira, embora Winston permanecesse impávido em seu prazer tabagista.

De repente junta-se à cena alguém familiar, devidamente ébrio, curvado sobre si mesmo a observar aquele parlamento estranho, ora torcendo-se para a direita ora para esquerda alternando de esguelha o olhar desconfiado para ambos os exaltados interlocutores.
Bem... exaltado só nosso Napoleão, porque Churchill lembrava mais o Francis. Aliás, Francis também podia ser visto dali, mais além, debruçado no balcão do bar da Diva balançando um snifter com um single malt escocês tirado sei lá de onde, o que provocava a conclusão de que ele, na morte, retomara o hábito alcoólico abandonado em vida. Falava então entusiasticamente para um Lourenço ainda vivo, distraído e inatingível em suas tarefas de dono de bar. O scotch deixava-o ainda mais sarcástico e falante, mesmo que estivesse agora técnica e definitivamente morto. Estaria morto?, tinha de estar, afinal, Labiú se lembrava bem de quando parara de assistir o Manhattan Connection insipido e banal só com o Caio e o Lucas.

Reconheceu num estalo o tal bêbado e era ninguém menos que Muriçoca, que depois de segundos suntando o diálogo franco-britânico proferiu seu epíteto:
- Vai tomá na sua "preura" nego véio. Papo ruim é esse? Vai tomá na sua "preura" - deixando os estranhos contendores em direção à beira do rio com uma rede de pesca.

Muriçoca?!?! Labiú perguntou a si mesmo.
Era ele mesmo, após correr a certificar-se antes de estacar pensativo na descida do barranco.
Péssimo sinal.
Não que Muriçoca fosse alguém a quem quisesse evitar, o problema era outro, o homem morrera há quase 9 anos. E se Napoleão, Churchill ou Francis já lhe haviam causado confusão e estranheza, nada se comparava ao fato de se deparar de novo com Muriçoca, alguém em cujo enterro estivera presente.
Como o último elo que o levaria a considerar o imponderável, estremeceu ao inferir o lógico, inevitável, aquele absurdo: eram almas, ele mesmo uma das muitas cujas línguas apontavam ser aquilo alguma espécie de congresso, encontro ou o último foro antes da eternidade!? Seria?
A barragem, a mesma de seus carnavais juvenis, das moças, dos moços, das Minas Novas de seus anos alegres, matinais... e um flash dolorido atravessou-lhe a cabeça, vindo então à tona o caminhão, a pedra, o pavor do acidente. Tudo acabado, em segundos.
Lembrou-se. Era mesmo aquilo. Estava morto!
Enterrou-se à queima roupa numa tristeza abismal, o peso da constatação da morte. Os amores, parentes, irmãos, amigos, a vida!!! Um século pareceu ter passado até que tivesse novamente força para erguer os olhos.
Mas o lugar permanecera como antes, apenas um ou outro rosto novo a chegar, ou a sair... se vivo. Juscelino, Rita Pezinho, Tiradentes, até Judas, dentre tantos outros que não conhecia.
Reconhecia vultos que vira inúmeras vezes nos livros de história, sua diletância secreta pelo estudo, pelas letras. E embora Rita Pezinho não constasse de livro algum - achava mesmo que por mera injustiça, já que como a protagonista do ditado popular que atravessara as bordas da cidade, do estado, sintetizando o sonho impossível, a fantasia que ao fim e ao cabo nunca se concretizaria, "ilusão de Rita Pezinho" -, tinha ela sim sua importância histórica. Achava mesmo Rita Pezinho até mais importante que Marx, que por sinal já elucubrava para outros revolucionários de cima do barranco da chegada da casa de Zarinha de Jacú seu comício político-metafísico. Ladeado por Sartre, Althusser e Guevara, esse ainda armado até os dentes sabe-se lá pra quê, redefinia o conceito de práxis, da mais-valia ao metamundo do qual era agora mais uma alma penada. O proletariado dava lugar às almas perdidas, e a burguesia agora seria representada por Deus e seus desígnios inescrutáveis. Inescrutável também sua presença física, já que nem Cristo sabia dar conta do pai.
Mas também lá todos eles deflagariam a revolução, mais dia menos dia, libertando as almas escravas do jugo do Senhor para torná-las escravas felizes do PMCA, Partido Metafisico Comunista das Almas.
- Almas de todo o metamundo, uni-vos - proferiu ao final.
Enquanto isso Gramsci apressava-se em auto encarcerar-se na sala aonde a pequena turbina importada da Alemanha na década de 50 ainda transformava hidráulica em eletricidade - afinal, para reescrever sua distopia seria necessário simular também o ambiente e o ócio do cárcere.
Jacú, que passava por ali tendo dificuldade em atravessar a pequena multidão de almas para chegar em casa, soltou um "vá a merda" em voz alta depois que Che acirrou os ânimos dos mortos úteis a se juntarem à causa, já sem paciência.
Vambora é fazer um molho pardo lá em casa. Deixá essa latomia pra esses gringo abilolados ai - concluiu.
Metade da turba se dissipou em direção à casa de Zarinha atrás dos frangos para o molho, embora a dona da casa não notasse a pequena multidão infestando todos os cômodos de sua casa, e muito menos o marido ali a seu lado, já que falecido há mais de três anos.
Mas algumas regras terrenas pareciam também valer por ali. Não eram como fantasmas que atravessavam paredes, tinham que andar para chegar aos lugares.

Dos vivos no Bar da Diva Labiú viu Renato, ladeado então por Harrison e Lennon a dedilhar um blues numa mesa; Rey no balcão cercado por Francis, Voltaire, Russell como num simpósio satírico, e uns outros que não reconhecera de imediato.
Porém todos os esforços para fazer-se notar aos vivos foram em vão. Embora gritasse com Renato, o sacudisse loucamente como que exigindo sua atenção, não conseguira nem mesmo um susto. Ouviu sim foi um "peace and love" seguido pelo V da mão direita vindo de George, vestido como no Sargent Peppers. Depois de várias tentativas insanas para que Renato ou Rey lhe dissessem o que estava acontecendo, desistiu frustrado.

A confusão em sua cabeça começava a irritar-lhe. Era imperativo descobrir o que era tudo aquilo. Por que raios encontrava-se ali, e por que tantos outros de tantos lugares, tempos, a perambular agora pela Barragem das Almas? Por que não no Hide Park em Londres, ou a Bourbon Street em New Orleans? Por que em sua Minas Novas? 
Seria o lugar uma espécie de limbo? O purgatório?

Agora que o tempo deixara de ser, pelo menos assim imaginava, uma limitação à sua vida de morto, o que mais faria?

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