domingo, 27 de março de 2011

Trem

Mineiro e trem tem uma ligação ancestral.
De Milton e suas inúmeras referências - sendo uma das mais marcantes o desenho da capa do GERAES, de 1976 - a meu sobrinho Léo de 3 anos e sua fixação por trens, todos trazemos uma imagem ou outra no subconsciente.
Atavismo.

Comprei na feira do Largo da Ordem uma tela do Plácido Fagundes em óleo e verniz. Trata-se de 'Noite Fria', na Estação Rebouças. Porém, pra mim é a viagem pendurada na parede de minha sala, quando deitado no sofá e absorto em tristeza ou tédio, migro tinhoso pra dentro de um vagão e parto daqui pras montanhas numa linha imaginária que sai direto de meu apartamento e vai até minha infância em BH.
Meu "Rosebud".

"A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte". [1]

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Imagem 1 - Plácido Fagundes, Noite Fria, em óleo e verniz
Imagem 2 - Milton Nascimento, em Geraes, 1976.
[1] Comida : Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer / Sérgio Britto ( e olha que nem gosto muito do Arnaldo. Mas o que é bom... é bom!)

sexta-feira, 25 de março de 2011

Zé Ninguém - Autobiografia de uma geração perdida

A geração de sessenta, minha geração, um paradoxo temporal parido no vórtice de um furacão contestador jovem, mundial, representado por uma trupe cabeluda, idealista, colorida, revolucionária, emblematizada por Beatles, Clube da Esquina, Hendrix, Tropicália, UNE, Easy Rider, Kerouac, Woodstock, tantos, outros... querendo sexo, drogas, rock’n roll, paz, amor, liberdade, arte, conhecimento, e contraditoriamente gerando - depois - filhos órfãos de causa ou ideal, estigmatizados como a “geração coca-cola”, sem sal, sem pimenta, rebentos talvez da ressaca, da pós-revolução cultural, política, moral... posteriores... nós... órfãos na falta de uma nova revolução, num mundo velho de cooptações e pragmatismo... órfãos, todos Simpsons, ou Ninguéns.

(...)

Me chamo Zé. Poderia ser João, Paulo ou Tião.
Não sou nada nem fiz nada, não mudei o mundo, nem fiz música, nem filme, nem poema nem teatro, não discuti o amor, a política, a moral, a arte, a filosofia, a literatura... Não sei quem foi Truffaut, Proust, Bituca, Welles, Wilde, Greene, Drumond... não caminhei com ninguém a meu lado, nem grande nem pequeno... sou individuo, vazio, preocupado com meu mundo, o mundo ao alcance de minhas mãos ou do controle remoto, wireless, bluetooth.

Meu sobrenome é Ninguém.
Não deixarei um legado, uma obra, sequer um libelo...
Depois de mim, ninguém saberá se realmente nasci um dia... sem traços, características, vestígios.
Aqui jaz Zé Ninguém, que nasceu promessa e morreu aquém...

A rigor, eu nunca existi!!!

domingo, 20 de março de 2011

Primeira... terceira pessoa

Eram 3 da tarde, domingo enfadonho, como são enfadonhos quase todos os domingos, dia escolhido para nossa expiação, depressão e reza. Resolvi evitá-lo no calendário criando um duplo sábado que desembocaria na segunda, sem domingo, sem reza.
A rebordosa provocada pela falta de regras do dia anterior sempre um agravante subliminar, nas segundas.
"Preto na folhinha", ainda ouvia essa ode à ética do trabalho proferida aos quatro cantos por gente que lhe oprimiu, a coação pela diferença, pela exposição da qual era objeto num círculo ao qual não pertencia, mas que habitou, porém. O sentimento de culpa, os olhos de recriminação deles todos a considerá-lo um pária, um ET, uma aberração por não compactuar da mesma crença (hoje sei que hipócrita e efêmera), perdido. Tinha dezenove.
Essa gente se desfez. Em minha vida, em suas vidas, no trabalho, em suas famílias, em quase tudo. Não poderiam mesmo dar certo, subverter tudo a uma verdade circunscrita àquela frase asquerosa, odiável. Convicto gritava consigo mesmo, em silêncio, os dias podem ter todas as cores, desde que não o maldito "preto na folhinha"!!! E continuava.
Sei que estava certo, antes influenciado pelo 'Elogio ao Ócio', do Russell, e desde sempre mais afeito ao 'ócio criativo', como De Masi.
Construiu família, não permitiu que se dispersasse, não em nome de algo abstrato, a serviço de sei lá eu quem, e nem pra quê. Não perdeu nem abdicou da música, da poesia, do gosto pela vida. O trabalho é só trabalho, e isso é tudo.
A fé em orações desaparecida há muito, confrontada pelo ceticismo e admiração pela ciência, pela realidade palpável, factível, onde vivemos, amamos.
Já àqueles coube outra busca, na alternância de crenças, na roleta russa frenética por algum sentido em suas vidas, a ânsia por um lastro que mostrasse-lhes o caminho.
Vazias, enumeraram religiões, seitas, o trabalho, status, as posses, esquecendo do óbvio, ali a seu lado, reais, os seus.
"Almas sebosas". Não sei se encontraram(ão) a paz.

De volta!!!

Uma temática me persegue, desde sempre. Chame do que quiser, provincianismo, xenofobia, ingenuidade, mas somos o que somos, e eu, principalmente, não nego isso nunca mais!
Com efeito, minha maior influência musical foi pavimentada por tudo o que fizeram os arautos do 'Clube da Esquina', Milton, Beto, Toninho, Lô, Tavinho, Flávio, Sirlan, Márcio, Brant, Ronaldo Bastos... Santa Tereza - onde nem nunca morei, diga-se de passagem, só em meus sonhos.
Foi o que sedimentou minha percepção musical, quer eu queira quer não.
Dai veio o resto, porque toda minha interpretação musical passa invariavelmente pela harmonia, pelo crivo do que ouvi do 'Clube', meu ponto de partida. Uma comparação que não consigo evitar.

Em 1996, Tusta me disse para ler 'Os Sonhos Não Envelhecem', do Márcio Borges. Como relutante incorrigível - sigo sempre meu próprio tempo, meu próprio compasso, nem melhor nem pior, só lento, às vezes, e às vezes não - comprei o livro ontem, 15 anos depois do lançamento.
E cá estou, de volta, com meu ufanismo mineiro, jactando-me nas palavras de Márcio, revivendo enciumado sua história como se pudesse me juntar à 'Turma do Levy', ser um dos tantos que caminharam e sonharam juntos de Milton, dos Borges, de todos, num tempo negro de não liberdades (1964), mas cujo boom cultural da juventude revolucionou o planeta, como (talvez) nunca mais.

Já a minha geração foi infinitamente mais sem sal. Prova disso é toda a minha dificuldade e ignorância em entender todas as referências sobre cinema, arte, jazz, filosofia, literatura, em tudo o que leio.
Mas felizmente Larry Page e Sergey Brin (e porque não Robin Li) nos deram de bandeja o Google, que na definição do Millôr, seria o "conhecimento prêt-à-porter". Hoje consigo eliminar minhas lacunas depois de alguns minutos de pesquisa, pelo menos.
Porém é triste notar que as gerações se sucedem e se obliteram, umas sobre as outras.
A de hoje parece que anda ainda mais cega.

Depois de tudo, como bom mineiro, repito: "trem de doido", o livro.

Claro que o Clube não seria compreendido por alguns, de cuja pressa e intelecto imediato não se pode esperar muita coisa... só que sejam baianos, como Marcelo (nada de) Nova.
Mas diferente do Faustão, com "os melhores de todos os tempos desta semana", os anos sessenta foram um trator cultural que pavimentou quase tudo o que ouvimos e vemos como 'O melhor de todos os tempos', até hoje.

Concluo nostálgico que nasci atrasado. Deveria ter nascido nos anos quarenta, consequentemente nos sessenta estaria em ponto de bala para pular nesse trem, nem que fosse apenas como um expectador longínquo. Ainda assim faria das (hoje) lembranças do Márcio as minhas, como testemunha quase ocular, mas definitivamente auditiva, de alguém que partilhara na linha do tempo um momento, um alvorecer de algo tremendamente novo.
Saudade.

"Saudade do novo".

"Se digo um ai
É por ninguém
É pela certeza
De saber que tudo tem

Tem sua vez de lá retornar
Ao lugar mais fundo
Fundo fundo mais que o mar

Se digo sol
Não tem talvez
Não espero mais a chuva
Só preparo meu começo
A explosão de toda luz
A chama chama chama chama

Se digo amor
Só é por alguém
É pelos malditos
Deserdados desse chão"[1]
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[1] Novena - Milton e Márcio Borges -  primeira da dupla, numa noite em 1964

quinta-feira, 17 de março de 2011

Turbilhão

Li a autobiografia do Agassi.
Sensacional.

Por alguma razão que desconhecia, já que cresci no subúrbio de onde só ouvia falar de tênis em nomes pomposos como Minas Tênis Clube, Barroca Tênis Clube, gostava muito desse esporte.
Hoje sei que eram dois os motivos: primeiro, porque sempre tímido e inseguro no esporte coletivo, quando responsabilizado pelos colegas de time pela derrota, brigava e saía como o desagregador. Nunca gostei mesmo de cobranças injustas, especialmente as vindas dos reais culpados, os ególatras que jogaram o tempo todo como que para si mesmos e para a platéia e que no fim vinham em busca de bodes expiatórios para tirar-lhes do foco da derrota. Queria sim jogar um esporte individual, onde não prestaria contas a ninguém, nem dos erros nem dos acertos, somente a mim mesmo, cobranças e insatisfações de quem posso ou tenho de tolerar, sem escolha.
Segundo, porque nunca vi esporte mais elegante.
Depois da primeira vitória de Guga em Roland-Garros em 1997 então, foi minha redenção.

Agassi traz novas nuances ao esporte, porém. O depoimento de um mito e suas impressões inequívocas. A solidão, a pressão. O desmoronamento de minha ilusão de que um esporte individual e solitário te elimine das cobranças e responsabilizações. O duelo interno constante, inseguranças e medos, receios, implodindo você o tempo todo. Podem destruí-lo... Embora possam também reconstruí-lo, reinventá-lo, caso aprenda com as derrotas, com os medos. Contradição.
Li 503 páginas em horas. Era impossível parar. Queria saber o que vinha depois: o próximo campeonato, derrota, glória, trapalhada, amor, tristeza, desilusão, alegria.
O garoto, que escandalizou usando shorts jeans, brincos, camisetas rosa, que raspou os pelos do peito e foi chamado de bicha, mullet colorido, sempre chamando a atenção pela aparência e rebeldia (ou eram a mesma coisa?) e pelo talento arrasador e inconstante. Se autodestruiu nos anos noventa.
Aos 29, em 1999, se reconstruiu.
O homem, maduro, acumulou recordes, títulos, voltou ao topo, até se aposentar em 2006, com 36 anos, refeito, reencontrado, em paz, enfim.

Gosto ainda mais de tênis agora.
Meu filho joga tênis. Como nunca jogarei na vida.
Talvez um dia eu o veja em Wimbledon, Roland-Garros...Talvez não. Quem sabe?!?!?

"A vida no tênis é um turbilhão"[1].
O livro do Agassi também. Fantástico.
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[1] (Andre) Agassi, Autobiografia, 2010.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Viajante

Recebi outra crítica dia desses. Talvez a segunda com o mesmo tipo de comentário. Não cheguei porém a considerar a possibilidade de adotar uma escrita linear/direta, com pouca ou nenhuma palavra que não trafegasse a linguagem coloquial antecipando o intelecto rápido, raso, a escravatura da vida moderna, o não hábito e gosto pela leitura, a aversão às citações, referências, conceitos, pensamentos.
Para ler sem dificuldade já temos o mago - e a TV. Minha sugestão aqui é ter o Google aberto em outra janela para a busca dos "ovos de páscoa" que salpico aqui e ali, pelo jardim, propositalmente, para instigar o leitor curioso a descobrir o que pra mim foi puro deleite pesquisar. São pequeninos seixos, cuja descoberta pode transformá-los em rubis - ou cascalho... O leitor que decida.

A leitura deve transformar ao suscitar a reflexão, a pesquisa, instigar o debate.
Deveríamos emergir melhores. Se o mundo moderno aplainou o intelecto e reduziu-nos a ávidos consumidores de auto-ajuda, misticismo, não serei eu que farei disso algo ainda pior.

Já há muita gente imbuída em “manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à fazenda como os outros animais" (citação do texto ‘Armas silenciosas para guerras tranqüilas’ de William Cooper).

Da minha parte, só me interessa o contrário, mesmo com toda a presunção que isso possa fazer pairar sobre a minha cabeça.

Aproveite... "ou não".

quinta-feira, 10 de março de 2011

Eu já sabia...

Artigo do Villa publicado em O Globo, ontem:
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O Congresso virou um balcão

O governo obteve o que desejava. Aprovou o novo salário mínimo. Usou do rolo compressor, da maioria confortável que detém no Congresso Nacional. Um dos destaques foi a fidelidade de alguns partidos, como o PMDB, principalmente na Câmara. Evidentemente que tem um preço. O pagamento são os rendosos cargos de segundo escalão. Dada a desmoralização da política brasileira, isto é visto como algo absolutamente natural. E alguns até teorizam: isto é fruto do presidencialismo de coalização. Só no Brasil…

As votações na Câmara e no Senado permitem várias observações sobre o funcionamento daquelas Casas. E não foram simplesmente sessões ordinárias. Não. Foram, provavelmente, as mais importantes deste semestre. O desenrolar dos trabalhos causa enorme estranheza, inclusive visual. A maioria fica de pé durante a maior parte das sessões. É a minoria que permanece sentada, como ocorre em qualquer parlamento digno deste nome. Quando um orador vai à tribuna, poucos prestam atenção pois sequer conseguem ouvi-lo. O barulho, a dispersão, as conversas em paralelo impedem que os congressistas possam acompanhar o andamento da sessão. Mas quem está se importando com isso?

É fabulosa a quantidade de parlamentares ao redor da mesa diretora, todos querendo ter um segundo de fama. Acreditam que um cochicho com o presidente, caso apareça na televisão, dará ao parlamentar uma enorme importância, sinal de poder para seus eleitores. Um sorriso e um sinal de concordância do presidente, então, é o máximo. Os parlamentares buscam incessantemente locais onde possam aparecer nas imagens, como o corredor central do plenário ou os microfones para os apartes. Na política congressual, a imagem é mais importante que o discurso.

Outro estranho procedimento é a permanência de um funcionário sentado ao lado dos presidentes da Câmara e do Senado durante as sessões, dando as orientações regimentais. Ele interfere nas decisões, sugere encaminhamentos, nega solicitações, como se fosse um parlamentar. É uma espécie de babá. Os presidentes acabam reféns do funcionário que tem mais poder que a maioria dos parlamentares, mesmo não tendo recebido nenhum voto popular. Isto porque o regimento substituiu o debate. Em vez da discussão política, tivemos uma enfadonha batalha regimental.

Em meio às questões de ordem e breves discursos, a maioria dos parlamentares continuava conversando, dando risadas, lendo jornais, consultando a internet ou trocando largos cumprimentos. Sabiam que estavam sendo vistos e alguns até devem ter reforçado a tintura dos cabelos, que varia do preto graúna ao acaju. O desinteresse pelo desenrolar da sessão era compreensível. O resultado da votação era conhecido. Não estavam lá para debater a proposta do governo. Foram simplesmente obedecer às determinações do Palácio do Planalto.

A balbúrdia das sessões foi tão grande que, diversas vezes, as mesas tiveram de informar o que significavam os votos “sim” e “não”. Na Câmara, o presidente Marco Maia estava perdido. E, para manter a isonomia com o ambiente, diversas vezes, ficou sentado de costas para os oradores que estavam discursando na tribuna (numa delas, de forma acintosa, quando discursava o líder do governo, Cláudio Vaccarezza, seu adversário dentro do PT). Maia optou dar atenção aos grupos de parlamentares que o procuravam para conversar, em vez de ouvir as intervenções dos deputados. Na sessão do Senado, José Sarney acabou se confundindo várias vezes e a todo momento consultava a funcionária que o assessorava (deve ser registrada a ausência na mesa de Marta Suplicy, tão ciosa, nas sessões ordinárias, no controle do tempo dos oradores).

Em meio à balbúrdia, como em um clube de adolescentes, os parlamentares brincavam, trocavam afagos e elogios. Os membros do baixo clero aproveitaram o raro momento de serem reconhecidos e ouvidos pelos líderes do governo. Estavam ansiosos para votar e ir embora. Afinal, ninguém é de ferro: queriam aproveitar a noite brasiliense.

As votações — a maioria delas não foram nominais — são meteóricas. Os presidentes falam rapidamente: “Quem está a favor, fique como está; quem for contrário, que se manifeste.” A fala é tão incompreensível que a maioria do plenário continua conversando. O mais absurdo é que em meio àquela bagunça, o presidente considere uma proposta aprovada. Os contrários à proposta — que não ouviram a “votação” — são obrigados a se dirigir ao microfone para poder registrar seu voto.

Neste jogo do faz de conta quem perde é a democracia. Um jovem interessado por política deve ter ficado decepcionado com o desenrolar das sessões. Não ocorreu nenhum debate. O formalismo regimental — além do grande número de partidos e blocos — impediu que o Parlamento pudesse efetivamente transformar a temática do salário mínimo numa discussão efetivamente política. E não foi um caso isolado: esta é a prática rotineira do Congresso Nacional.

Não há vida parlamentar. E não é por falta de número: no total são 594 representantes do povo. É um dos maiores congressos do mundo democrático. Também não é por falta de recursos: o orçamento anual é de mais de 5 bilhões de reais. Mas quem consegue citar 30 ou 40 nomes de parlamentares que se destacaram na última legislatura?

O Poder Legislativo não consegue desempenhar suas funções constitucionais. O Executivo decide e o Congresso chancela, sem discussão. É tão inexpressivo como um cartório. Mas rendoso. A representação popular foi transformada em um balcão. E para a maioria dos políticos é um ótimo negócio.
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Marco Antonio Villa
Historiador. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. Bacharel e Licenciado em História, Mestre em Sociologia e Doutor em História.


Em outro post trarei o que disse o prêmio Nobel de literatura de 1950 acerca dos políticos. Isso ainda no século passado. Predição ou clarividência? Deixo para a sua reflexão. Aguarde...

sábado, 5 de março de 2011

A Quarta Dimensão: Cronos e José

Mirou um relógio de pulso cuja "simplicidade e sofisticação", aliada ao arrojo e requinte do material, obrigou-o a entrar na loja. De fato era uma peça única.
Era estranho ser atraído por relógios, todavia... uma vez que era absolutamente avesso a compromissos e horários, os quais considerava marcos inflexíveis no vagar de sua vida, instigando-o sempre a padecer da inevitabilidade das horas como um mero coadjuvante e escravo do pêndulo. Não aceitava mais.
Porém, não amava somente os de pulso, mas também os cucos, os de bolso, os de sol, ampulhetas, as clássicas clepsidras, talvez para desafiá-los com sua teimosia acrônica e decidida, ao mesmo tempo em que insultava com intransigência o canto dos minutos, horas, seu tic-tac infinito, com um olhar de colecionador. Naqueles momentos tinha a sensação de que possuia o tempo, e não o contrário. Subvertia Cronos a seu seviçal, nas paredes, estantes e armários de casa. Tinha perto de 300 relógios, dos mais variados, até uma miniatura de um de sol, horizontal, que fizera ele mesmo: um gnômon cortado como um triângulo retângulo com um dos ângulos agudos com a medida da latitude de casa, 25º25'45.70"S, sobre uma placa plana de mármore cuidadosamente entalhada em um círculo de 30 cm de raio. A extremidade fora trabalhada para causar a impressão de uma peça antiga, retirada da rocha sem a tecnologia das máquinas de corte modernas, esculpida a mão, tal qual os mármores de Elgin, que tanto o fascinaram, outrora.
O comprimento da hipotenusa do triângulo ligeiramente menor que o raio do mostrador.

O fetiche não se reduzia apenas a materializar o tempo, torná-lo palpável e sob o controle de suas mãos, mas também incluia a arte das peças. O material, cores, design, sutileza dos entalhes, tudo, enfim.
Se Cronos, filho de Urano, o Céu estrelado, e Gaia, a Terra, tornara-se a pedido de sua mãe o senhor do céu castrando o pai com um golpe de foice, naquela alcova de 16m² o Titã não tinha poder algum.
Destronado por seu filho Zeus uma vez, era-o novamente, agora por José, um humilde funcionário público de 55 anos cujo único amor o tempo apagara 25 anos atrás, e pelo qual resolveu se vingar, subjugando-o por entre seus dedos, fazendo-o parar, extendendo-o, sem mudanças, em momentos, sempre os mesmos, quase ao infinito.

Lembrava da paixão que o consumiu instântaneamente, por 10 anos. Lembrava-se também de como nos últimos 2 anos dele e Dora, algo parecia ter desvanecido, apagado, como se seu amor estivesse a ser implodido pedra por pedra pelo tambor dos meses. Insistia em buscar as lembranças do início, trazê-las de volta, apresentá-las a Dora como prova de que poderiam ser de novo o que foram. Tudo em vão. Eram apenas lembranças, não mais os momentos que viveram, impossíveis de reconstruir ou reviver.
Eram os anos tristes que mais frequentemente pulsavam de sua memória. Cronos a engolir os próprios filhos deixando-os foscos, sem vida.

Começou logo depois da separação, sua compra do tempo. Um após o outro foram se juntando ao acervo agora variado pelos 25 anos de busca, entulhados em seu quarto como o tambor da decadência e do vazio.
Chegava do trabalho e peregrinava por seus 300, parando-os, por vezes, um a um.
Deitava-se na cama e contemplava seu feito, depois. O tempo parara, enfim, ao toque e vontade de suas mãos. Cronos subjugado, não mais o martelo das horas a extrair-lhe a vitalidade e o amor.

Porém, não havia mais Dora. Eram só ele e as lembranças... que agora ocupavam o quarto e bailavam à sua frente como num filme mudo.
Fizera então de Cronos seu eterno escravo, a vingança por ter-lhe levado Dora, ali, preso e controlado em sua miríade de marcadores, um segundo Tártaro ao Titã, o quarto de 16m² de um funcionário público... José, como tantos outros. O tempo parava...
Mas ele também um escravo, porque as lembranças lhe doiam.
Voltava, então, anti-horário, religava todos, uma a um, só para ouvir-lhes novamente o derradeiro som do inevitável, esconder-se de novo da dor, da saudade... sua carapaça temporal, seu Tártaro onde a Cronos se juntava, como filho, amigo... irmão.
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Imagem: A mutilação de Urano por Saturno, de Giorgio Vasari e Cristofano Gherardi.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Silogismo

Premissa primeira:
Como em "The Beach", filme baseado em livro homônimo de Alex Garland, é comum ignorarmos toda e qualquer imagem que nos desconforte, estorvos, misérias e injustiças que enfeiam nosso mundinho particular. Melhor fingir que não existem e continuar conversando e andando.
Fazemos ouvidos de mercador para as súplicas, pedidos de socorro e deixamos, como no filme, nossos 'Christos' morrerem à míngua, desde que afastados de nossas vistas. Voltamos, assim, ao nosso mundo perfeito em minutos com o ato simples e barato da omissão.
O que seria de nós se vivêssemos como Francisco de Assis? Talvez o mundo fosse até um lugar melhor ?!?!?!
Mas muita gente lucra com o medo e a desgraça, e fomos ensinados, desde cedo, tal qual nossos políticos e homens públicos, a darmos de ombros.
Diria Salomão: "não sejas demasiado justo nem demasiado sábio: queres te arruinar?" ... Nunca gostei dessas interpretações bíblicas...

Premissa segunda:
Percy L. Julian nasceu em 1899, no Alabama. Neto de escravo, viveu a era de Jim Crow[1] nos Estados Unidos. Cursou a Universidade DePauw em Greencastle, Indiana, numa época de segregação que o forçou a muitas humilhações. Julian não foi autorizado a viver nos dormitórios da faculdade e viveu primeiro numa casa fora do campus, que se recusava a servir-lhe refeições. Alguns dias se passaram até que Julian encontrasse um estabelecimento onde ele pudesse comer.
Tinha tudo pra dar errado.
Porém, tornou-se um dos pioneiros da síntese química de hormônios humanos em larga escala, esteróides, progesterona e testosterona, a partir de esteróis vegetais como o estigmasterol e o sitosterol.
Lançou as bases para a produção industrial de medicamentos como cortisona, outros corticosteróides, e pílulas anticoncepcionais.
Seu trabalho ajudou a reduzir o custo de esteróides intermediários tornando economicamente possível a classes menos abastadas o tratamento de doenças reumatológicas graves.
Durante sua vida patenteou mais de 130 produtos químicos.
Julian foi um dos primeiros afro-americanos a receber um doutorado em química. Foi também o primeiro químico negro empossado na Academia Nacional de Ciências e o segundo cientista afro-americano a fazer parte da academia.

Conclusão :
"União, Estado, Distrito Federal e Municipios são responsáveis solidários pela saúde, tanto do indivíduo quanto da coletividade..." mas aqui não são os US, não existem Percy Julians, e racismo só serve mesmo é pra alardear e justificar a Secretaria da Igualdade Racial.
Ademais, a União, Estado, DF e Municípios estão quase sempre a dar de ombros, a menos que você seja parte da plutocracia partidária ou parente do Sarney.
Se compelidos por um drama pessoal passamos de indiferentes a suplicantes, bebemos de nossa própria estupidez e descaso como legado dos longos anos de surdez e cegueira.
Talvez fosse a hora de nos sairmos mais a Francisco de Assis e menos a Salomão, mais a Percy Julian e menos a Mano Brown, mais a ser humano e menos a ministro da saúde.
O remédio não deveria custar tão caro assim, caso fosse esse realmente um "país de todos".
"Deve-de..."
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[1] As leis de Jim Crow foram leis estaduais e locais decretadas nos estados sulistas e limítrofes nos Estados Unidos da América, em vigor entre 1876 e 1965, e que afetaram afro-americanos, asiáticos e outras raças. A "época de Jim Crow" ou a "era de Jim Crow" se refere ao tempo em que esta prática ocorria. As leis mais importantes exigiam que as escolas públicas e a maioria dos locais públicos (incluindo trens e ônibus) tivessem instalações separadas para brancos e negros. Estas Leis de Jim Crow eram distintas dos Black Codes (1800-1866), que restringiam as liberdades e direitos civis dos afro-americanos. A segregação escolar patrocinada pelo estado foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte em 1954 no caso Brown v. Board of Education. Todas as outras leis de Jim Crow foram revogadas pelo Civil Rights Act de 1964. Fonte: Wikipédia