quinta-feira, 9 de agosto de 2012

ZéMota

Tive muitos ídolos. Tenho alguns ainda...
Toninho, cuja harmonia transcendeu o comum e dividiu águas. Russell, Voltaire pelo sarcasmo e argúcias desconcertantes. Benito Barreto e Guimarães por capela dos homens e grandes sertões. Reinaldo pelos gols no Cruzeiro... e no resto. Millôr, Francis, Beto, Tusta, tantos.
Uns escritores, outros músicos ou filósofos, jornalistas, jogadores de futebol... amigos, gente desconhecida, qualquer um. Nenhum político, todavia, e é bom que se diga.

Mas idolatro e idolatrei mesmo foi um motorista de caminhão do Vale do Jequitinhonha, daqueles que cortavam a estrada velha e depois a Definitiva num Chevrolet caixa seca, na lama, sem freio, carregado de porcos, ou o diabo. Cruzou o Brasil saindo de Minas Novas, lugar ermo (pelo menos naquela época). Seu orgulho maior era apenas dirigir como ninguém, como se tal virtude fosse mesmo o supra sumo da vida. Era pra ele, e era pra mim por extensão direta e laço de respeito e admiração. Contou-me histórias, casos de uma terra que adotei minha através das memórias dele, como se tivesse nascido e crescido lá desde sempre.
Assim Bulé, Biga, João 100%, Tião de Angelino, Zé Camargos... assim o Bongô, a Pedra da Onça, o Beco do Mota, Diamantina. Assim as bolas de fogo, inúmeras, incontáveis...

Para a inteligência vale o princípio da abundância, que diferentemente do pressuposto da escassez na economia, prescreve que quanto mais falta, mais tem-se a impressão de que sobra. Simplificando, quanto menos se enxerga,  mais arrogante, mais estupidamente decidido o estulto arrota o bom senso e agudeza que derradeiramente não tem.
Chico Doido uma vez, numa viagem de Minas Novas a Belo Horizonte, fingiu-se o tolo da história, fazendo feliz o verdadeiro besta da viagem. A estupidez tem mesmo essa característica, não entende a própria mediocridade que por cegueira projeta nos outros. O esperto era Chico. Sempre foi.
Assim cansei de ver idiotas projetando sua estupidez naquele motorista, que ria internamente da cegueira alheia. E seguia, como sempre fez.
Com alguns me indignei, com outros, simplesmente dei de ombros. Um deles disse uma vez que "quem enterra m... é gato", quando falava de um velório alheio.
Foi primeiro... cercado dos gatos a lhe cobrirem de terra... sua sina.
Sua cegueira poupou-lhe ao menos da constatação do óbvio, sua essência fétida.

A vida passou. Para aquele motorista até acabou, como também acabará para mim um dia.
Mas valeu a pena... sua alma não foi pequena.

Quanto a mim, conheci Kafka, Dostoievski, Rosa, Schopenhauer... Ouvi Bach, Toninho, Milton, Tião Contente. Vi mundo, do Japão à Hungria. Nadei no Bonsucesso e dormi bêbado no sobradão do Mário num carnaval. Acumulei lembranças.
De uma forma ou de outra, tudo graças a ele, seu legado em mim. E embora não tenha guardado posses ou dinheiro, continuo acreditando no princípio da abundância no que tange assuntos relacionados à inteligência. E diferente de Brás Cubas, tive filhos, plantei um jacarandá e ainda escreverei um livro.
Ainda vejo com certo descaso a ostentação das posses, da grana como condição inequívoca de sucesso.
Para estes, nunca a agonia de Joseph K, ou Raskólnikov, ou a epopéia sertaneja de Riobaldo Tatarana. Nunca saberão nada sobre o universo inflacionário ou a Turritopsis nutricula. Não conhecerão o bar do Cardoso, ou nadarão no Buriti.
Meu velho dizia com sinceridade desconcertante o que esses nunca poderão dizer:
 "- Da morte não tenho medo. Meu medo é o Cardoso fechar as portas."

Da Vinci vaticinou que "a simplicidade é o último grau de sofisticação".

E eu continuo achando que aquele motorista de caminhão era mesmo um deus, o Da Vinci do Vale que me deu esse jeito de andar...

Só um "cabra homi" que de bônus ainda me permitiu um dos maiores deleites que tive na caminhada até aqui: ter andado a seu lado... ser seu filho.

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