domingo, 19 de setembro de 2010

Crônicas do Mato. #1 : "É os tais negócio"

Algumas expressões tomam tamanho e transcendem o tempo e a situação em que foram primeiro proferidas. Deixam de ser exclusivas, circunscritas ou isoladas e viram domínio público.
Foi assim, diz a lenda, durante um baile em 1347, onde a Condessa de Salisbury, amante do rei Eduardo III de Inglaterra, perdeu a sua liga, azul. O Rei mais que depressa recolocou-a, sob o olhar e sorrisos dos nobres.
O Rei grita então (em francês, que era a língua oficial da corte inglesa) "Messieurs, honni soit qui mal y pense!(...)” (Maldito seja quem pense mal disto!).
“(…) Ceux qui rient en ce moment seront un jour très honorés d'en porter une semblable, car ce ruban sera mis en tel honneur que les railleurs eux-mêmes le rechercheront avec empressement." (Os que riem nesta hora ficarão um dia honradíssimos por usar uma igual, porque esta liga será posta em tal destaque que mesmo os trocistas a procurarão com avidez).
Eduardo III, no dia seguinte, cria então a ordem da Jarreteira, tendo como símbolo uma liga azul sobre fundo dourado, que ainda hoje é a mais prestigiosa ordem do Reino Unido, tendo somente 25 membros e cujo Grão Mestre é o monarca da Inglaterra.
Quase todos os mais importantes primeiro ministros do Reino Unido dela fazem parte.

Tais expressões, embora curtas - ou talvez por isso mesmo, sintetizam, ao mesmo tempo que encerram a justificação em si mesmas.
Irrefutáveis, põem fim a pelejas e acabam com discussões.

“Dão”, primo primeiro do meu pai, numa viagem de Gangorras a Minas Novas num Jeep Willys 59, lá pelos idos de 63, foi alertado pelo velho sobre o fumacê vindo de dentro do capô:
- Dão, o carro tá fervendo.
"- É cumpadre...ele custuma mornar."
Pra quem entende, o carro ferveu e a viagem só foi restabelecida hora e meia depois, após pararem fora da estrada e aguardarem que o motor esfriasse, não sem rirem bastante.
Buscaram água no Ribeirão da Toca, e sei lá se pela qualidade da água ou mesmo porque antes ela faltara, puderam completar a viagem depois daquilo.
O mesmo Dão, na rua 4 da casa do Betânia, distraiu-se com uma pinga enquanto uma varejeira desavisada mergulhou em seu copo. E ela deve ter apreciado a pinga do Tião Labatu, porque não sairia de lá por vontade própria.
Bem, o velho de novo pontuou:
- Dão, caiu uma mosca na sua pinga.
Com desimportância, sem tirar os olhos do interlocutor e continuando a conversa, balbuciou inclinando o copo e dando um peteleco no inseto:
"- Sai brabuleta, sai brabuleta..."
Degustou depois a pinga, sem pudor.

Zé do Mudo então tem uma que é uma espécie de panacéia lingüística. Serve pra tudo e todas as situações. Não sabe o que dizer? Está comovido, assustado, apavorado? Seu time venceu o campeonato? Perdeu? Novidade boa? Ruim? Tragédia?
“- É os tais negócio. Num falo com cê? É os tais caso.”
(...)
Dona Celuta, da aristocracia minasnovense dos anos cinquenta, tempo em que vir à capital era um evento, não só pelo fato de visitar a corte mas também pela odisséia da viagem em si, também deu uma das suas.
Em BH tinha bonde. Na Praça Sete, a mesma onde Zé de Maria Lora um dia perguntaria indignado aos transeuntes (ignorantes) se tinham visto o pai, então prefeito... de Minas Novas, Celuta estacou na parada de bonde na confluência com a Av. Afonso Pena. O Bonde chegou e todos pularam avidamente pra dentro, como era normal. Senhora respeitável, tomou o tempo e o cuidado necessários a uma dama para subir e se aboletar numa cadeira. Ai, petulantemente e autônoma proferiu:
"- Podemos ir!"
Coincidência, já que o motorneiro distraído nem dera ouvidos ou atenção, a alavanca foi acionada e o bonde pôs-se em movimento.
(...)
Fabeca, o caminhoneiro mais famoso e bem sucedido daquela época, arranjou certa vez um ajudante um tanto estranho: "João 100%".
Durante as viagens, João costumava virar-se bruscamente para o motorista no volante e fitá-lo por alguns segundos com um olhar insano, arregalado, olhar de hospício.
Seu Fábio não gostava nada daquilo. Era amedrontador.
Uma vez, o Chevrolet carregado perdeu o freio descendo o morro em direção a ponte do Araçuai.
Iraval, o motorista da vez, fez o possível para manter-se na rota...e mantê-los vivos.
Bateram algumas vezes nos barrancos antes que o caminhão parasse, tombado no meio da estrada. De cabeça pra baixo, atordoado dentro da cabine com a bacia quebrada e já sofrendo das dores do acidente, Iraval ainda teve tempo de praguejar depois de mais uma investida de João 100%, o chapa ali a seu lado:
"- É aqui Gerarrrda! "(1)- vociferou 100% imediatamente após o caminhão estancar os saculejos.
- Vá pra puta que pariu, João – disse um Iraval nada recomposto, já pensando no caminhão, nos prejuízos com a carga e no emprego.

Tem outra de caminhoneiro. Quando em comitiva, num Chevrolet caixa-seca, meu pai cedeu aos apelos de Paulo Leite - que vinha numa Scânia - para que trocassem de caminhão por alguns quilômetros, deu-se o rebento de outra expressão muito útil. O velho na Scânia ouvia o barulho das marchas não engatadas, do caminhão Chevrolet guiado agora por Paulo, logo atrás. Meu pai então diminuiu a velocidade, para não perdê-lo de vista no retrovisor. Viu, minutos depois, os faróis piscando, senha de que deveria parar. Parou no acostamento, desceu do caminhão e esperou que Paulo chegasse.
"- Pra dirigir cinco marchas (Chevrolet caixa-seca) tem que chupar dentifrício" – espetou Paulo desolado por sua incapacidade de trocar as marchas do caminhão.

Tais expressões entraram em nossa vida, vivas feito memórias.

Muito provavelmente o neófito diria que isso é conversa de extraterrestre, caso nos flagrasse parlamentando amenidades:
- Dona Celuta: podemos ir.
- Sim, mas meio-dia... Tá quente demais não???
- Custuma mornar.
- É os tais negócio...Num falo com cê? Pra viajar pra Minas Novas "com essa lua" tem que chupar dentifrício.
- É os tais caso. "Bora"
- Sai brabuleta...sai...
- "Sim moço"...
- É aqui Gerarrrda!
- "Bico...bico...casca, rôia, leco leco...pega...pega...qsss qsss qsss"
(...)
E “honni soit qui mal y pense!” ...pra quem não entendeu.
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(1) Marchinha vencedora do carnaval de 1960 em S.P. Autoria: João Rubinato, ou simplesmente, ADORINAN BARBOSA

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