segunda-feira, 28 de maio de 2012

Memórias prévias

Ainda me lembro da sala da casa onde tínhamos um '3 em 1' Sharp, de meus vinis dispostos numa pequena pilha num espeto metálico no centro do pick up enquanto a bandeja dispensava um LP após o outro e eu lia Hemingway ou Steinbeck deitado no sofá. A agulha percorrendo os sulcos do disco e fluindo mansa - caso a bolacha não estivesse arranhada - quase até o centro da circunferência, quando então o braço retornava à posição original externa ao perímetro do vinil e outro LP caía fazendo a agulha pousar novamente no início da próxima trilha.

A trilha sonora de 'Adeus às Armas' talvez tenha sido 'Circense' de Egberto Gismonti, ou 'Alma', ou ambos. 'Tortilla Flat', ou 'Boêmios Errantes' correu ao som de Marco Antônio Araújo e seu primeiro LP, 'Influências'.
'1984' li ao som de 'Tales of Topographic Oceans' do Yes e 'Crime e Castigo' teve Premiata Forneria Marconi como fundo musical, 'Photos of Ghosts'. O memorável 'Chocolate Kings' do PFM - LP que meu mano Tião deixou-me sem querer de herança... "desculpe a partida, nem foi por querer..." -, também pavimentou as lembranças de 'Capela dos Homens' e 'Mutirão para Matar', do Benito Barreto.

Minha memória sempre foi mais musical que olfativa ou visual, ou táctil. Ademais, embora considere a ideia de guardar memórias em pequeninos tubos de ensaio um verdadeiro achado, a mágica de Hogwarts não funciona aqui. E a menos que quisesse seguir Brás Cubas, o que não quero, prefiro remoer minhas lembranças aqui mesmo, bem vivo.

(...)

Meu filho venceu outro torneio de tênis nesse último final de semana. Jogou contra adultos e em cinco jogos sagrou-se campeão, memória que ficará registrada agora por 'Starship Trooper', 'Turn of the Century' e 'Roundabout', músicas do Yes que ouvia em meu ipod antes dos jogos. Ao ouvi-las novamente posso agora lembrar desse domingo, de smashes, winners, de todo o orgulho que senti ao vê-lo arrasando adversários mais velhos e muito maiores que ele.
Antevejo memórias futuras com trilhas sonoras que ainda nem imagino, embora com resultados semelhantes aos de ontem, espero.

Não quero saber de memórias póstumas, embora ainda insista em escrever um 'Barragem das Almas'.
Além do mais, não corro o risco de Cubas... Eu... tenho filhos.


Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.[1]
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[1] Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capítulo CLX: Das Negativas - Machado de Assis.

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