sábado, 3 de abril de 2010

Icárias


“Minha inquietação busca o mar.
Basta dizer que já falo,
o que ainda não era normal.”




"Asas, um voo sobre a sêca e a terra vermelha, por sobre o povo, quem sabe?”

Esse sonho de voar sempre povoara-lhe a cabeça, como a solução de Dédalo para fugir de Creta, embora dessa empresa tenha seu filho perecido, transformado em mar e memória.

Com a ajuda e cumplicidade de um seu amigo rascunhou num pedaço de papel os contornos e dimensões de sua asa, com aquela presunção do desenhista que aprendera no ginásio algumas parcas lições de geometria, proporções e perspectiva. Correu depois cada um para sua casa em busca dos insumos necessários à construção.

Dico de Serafim trouxe o martelo, todos os pregos que encontrou perdidos em casa e uma lona velha de caminhão afanada sorrateiramente das coisas do pai. Duí providenciou o resto: as ripas de madeira retiradas de caixas velhas da mercearia do Zé Camargos, o serrote e o alicate emprestados por Ioiô, seu irmão mais velho, depois de uma saraivada de xingos, insultos e palavrões. Reuniram-se novamente no quintal da casa de Duí tão logo juntaram as tralhas para a empreitada.

Debaixo de uma das várias mangueiras do quintal, a de manga rosa, que presenciara mais de uma vez seus desassossegos estendendo-lhe a mão branda das folhas, começaram o trabalho de construção da asa sem esconder o entusiasmo, quase histéricos. Escondidos do calor sufocante que monta à fome e à tragédia do Jequitinhonha construíram num esqueleto de madeira em forma de um grande triângulo isósceles a asa feita com a velha lona de caminhão do Serafim. Após alguns pregos e marteladas, costuraram-na por dentro seguindo as bordas das ripas e o contorno, de acordo com os rabiscos do desenho. Colocaram logo depois a alça, se é que se podia chamar aquele frágil retângulo de madeira fina de alça. Estava pronta afinal! Observaram-na por alguns segundos hipnotizados pelo prazer e satisfação que a materialização de um desejo provoca. Eram olhares transparentes, trespassando a perspectiva do voo com uma inquietação pueril, exterior.
- Vamos até o morro da contagem - interpelou Dico instantaneamente.
- Lá não dá. Tem que ser num lugar de onde a gente possa saltar, Dico - Duí respondeu com ar de superioridade - no morro da contagem, lugar realmente alto, faltava um ponto, um pico de onde eles pudessem alçar voo.

Depois de alguns minutos matutando, eliminando em pensamento os lugares que não preenchiam os requisitos, Dico soltou a palavra num tom de voz elevado, desses reservados às descobertas - se tivesse tido noções básicas de física teria dito “Heureca!”, quase num grito:
- Já sei. Vamos pular do muro do cemitério. De lá podemos voar por cima da cidade toda.
- Essa foi boa. - E passou-lhe pela tela dos olhos um filme em rotação alterada, muito mais veloz que o normal, um lampejo imaginário do voo embaçando-lhe a retina, as cenas passando rápida e desordenadamente, desejos, sonhos, euforia andando mais depressa que seus passos trôpegos subindo a rua da Igreja do Rosário. - Vamos lá! - completou Duí.

A rua Getúlio Vargas, com seu mosaico de lapas retiradas do rio Fanado pavimentando o solo com formas irregulares de um tom cinza, brilhante. Logo depois de passar a Igreja do Amparo, ali, do lado da Mercearia São Geraldo - onde o Zé Camargos vendia refresco de essência de uva para os da zona rural que aguardavam a condução de volta - à direita, uma casa caiada, com a fachada fosca típica das paredes de adobe, um moço sentado à porta. Franzino, cabelos longos e loiros, sempre com uma expressão densa vincando-lhe a face e imputando alguns anos a mais à sua magra juventude.

O sol emergenciava a vida num ritmo aparentemente lento, inexorável, conquanto acelerando o destino com o peso da dor, da seca, da miséria. O calor refletido no solo emprestava à paisagem a imagem desolada da distorção, a lente deformadora da canícula projetando as imagens das casas, das ruas, das gentes, num fundo ondulante de cáustica aparência.

Olhos azuis desbotados, talvez arautos da tristeza ou do romantismo masoquista dos poetas. Arredio, ou então, simplesmente renegado pelas pessoas que se agrupam e determinam padrões de comportamento. Talvez as duas coisas. Tinha poucos amigos, e na verdade, falava muito pouco. Não se identificava nos outros de sua idade e tinha, aí sim, um orgulho e convicção que faziam seus olhos crepitarem de fúria, embora não prezasse o embate físico, todas as vezes que sofria enxovalhos. “À puta que os pariu seus merda! Cambada de imbecis!” - vociferava reiterando sua certeza de não querer ser com eles, a despeito disso às vezes lhe custar um certo trabalho para se livrar do sitio.

Dico também subiu a rua calado, mas com um sorriso maroto impregnando seu rosto. Afinal, embora fossem amigos, havia uma concorrência enrustida entre eles, e se Duí tinha tido a maravilhosa ideia da asa, sem ele, Dico, o cemitério ainda estaria no mesmo lugar de onde viera. Emudecido, Duí continuava a passos largos com um olhar perdido, absorto em suas divagações.

As razões eram adversas, alheias à vontade do raciocínio. Pelo menos eram assim com ele. Firmavam-se como referências, o ponto mais emergente das circunstâncias, a única coisa da qual ainda se podia ter mira, divisar no emaranhado difuso das angústias, no turvo rio das lembranças e das mágoas. Refluíam do passado com um rancor acre, seco, o amargo da piedade, da humilhação, da descrença. Bastava! Já eram motivações suficientes para revanche. As lembranças não desapareciam. Como o sol, tornavam os dias mais longos, as noites mais ácidas e desesperadas, a vida mais fosca no marulhar das águas negras nos barrancos dos anos de sua infância.

Ficava na saída da cidade, na estrada que levava para a Lagoa Grande - um lugarejo a uns 18 km de Ouro Velho. Encravada no vale do rio e prolongando-se morro acima em todas as direções, o cemitério encontrava-se exatamente no topo onde as construções findavam. Era cercado por um muro alto, com uma espessura na parte da frente que tornava possível caminhar sobre ele como numa pequena ponte de concreto.

Eles subiram no muro numa tarde por volta das três, com o sol fritando suas cabeças, tendo por testemunha a vegetação e a opulência rude das coisas da cerrado - João coveiro não se encontrava em seu “posto de guarda”. Não foi fácil. Embora o peso da asa pudesse não ser muito grande, seu tamanho tornava-a um trambolho que dificultava galgar a altura.

As ruas estavam vazias. Era domingo, um fatídico dia de seca e calor do mês de Abril. Na verdade, não raro era fácil confundir qualquer outro dia com Domingo. Naquele fim de mundo o calendário é imudável, redunda todos os dias da semana a um só, estabelecendo o ritmo tedioso da lida. Todos se refugiavam do calor na Barragem das Almas ou nos botecos, tomando uma “pinguinha” entre formulações excêntricas e soluções inflamadas para os problemas do mundo. Falava-se, nessas ocasiões em que as insolações da pinga e do calor se misturam, de todas as coisas de Deus e do Demo. Surpreendentemente, folga também da fofoca na janela, pois não havia nenhuma beata de plantão se esticando no parapeito para desferir sua língua pontiaguda contra um transeunte qualquer na rua. Afinal, não havia ninguém disponível para embargar a empresa.

Depois de uma disputa birrenta para saber quem voaria primeiro, Duí impôs sua autoridade de pai da ideia e conquistou o direito. Dico, resignado, ajudou nos preparativos. Colocou a asa sobre as costas do amigo, que enfiou a cabeça dentro do retângulo formado pela alça com a qual seguraria a asa, passando os braços por fora da madeira e segurando, com as duas mãos, na ripa horizontal que ficava na altura de sua virilha. - É a posição mais confortável para poder manejar a asa - pensou.
- Vamos esperar dar um vento - espetou Dico com um olhar científico vasculhando as imediações como quem analisa as condições para o voo.

Duí permaneceu calado, imerso em sua excitação e expectativa. Já começara a enxergar seu salto vitorioso para um voo panorâmico por cima da cidade. O filme agora era visto em rotação normal, lento, colorido, com rigor de detalhes, cena se superpondo a cena numa sequência perfeita, magnífica. Libertaria sua ira, seus ressentimentos, abriria o peito lá de cima e entornaria todo o fel de sua mágoa sobre o Labirinto da cidade. Veria pessoas se afogando, a beata Marilú contorcendo-se no chão com seu vestido preto, luto eterno, enterrado até a cabeça com o caldo de sua raiva. Babau praguejando palavrões e arrancando gemidos dos mais próximos com seus coices cegos, remontando as cenas grotescas do inferno de Dante. O Bira, porque esse sorria? Seria por nada entender ou por simplesmente duvidar do ácido amargo de suas entranhas? Não, para esse o fel era como o vinho, seco, amigo, tal como Pangloss no melhor dos mundos, talvez o derradeiro veneno para sua embalsamada caminhada, a salvação afinal.
Esta cidade lhe devia isso. Louco? A humilhação de sua piedade quebrar-se-ia em mil pedaços, cacos pontiagudos cortando as pessoas feito o estio. Enxergaria todas como pequenas formigas, frágeis e minúsculas lá em baixo, pareceriam poeira e misturar-se-iam a ela, voltariam enfim para a força telúrica, abandonadas da mágoa, da raiva, da perfídia congênita e contagiosa dos dias. Hoje haveria de ser o dia, haveria de ser.

O vento demorou, mas de repente, um sopro poeirento jorrou sobre seus ombros e ele voltou à realidade com as mãos do amigo espalmadas com força sobre suas costas:
- Duí, vai até lá em baixo na ponte, passa pela prefeitura, pela igreja do Rosário e depois volta sem demora que eu também quero “dar uma” - e Dico, sem pestanejar, sem esperar resposta, empurrou determinado o companheiro rumo ao céu.

Muita poeira subiu com a ventania, Dico fechara os olhos protegendo-se dos “ciscos” e da cortina vermelha que a terra seca da estrada da Lagoa Grande fez formar. Logo que os abriu, esfregando-os com suas mãos sujas, olhou para o céu em busca do companheiro. Procurou por todos os lados, dando uma volta em torno de si mesmo ansioso:
- Duí. Duí. Duí...Agora sou eu Duí.
Já impaciente porque o amigo experimentava primeiro a sensação de voar, e com a velha frustração de ficar em segundo martelando seus brios, continuou aos gritos chamando o companheiro sempre com os olhos vasculhando os céus.
- Duí, Duí, Duí...

Quando ouviu uma voz gutural, rouca e pronunciada por entre os dentes, que vinha de baixo, olhou de supetão para o solo à sua frente; mas como a poeira não se dissipara totalmente, teve dificuldade em divisar um vulto em meio àquela voz engasgada, voz de suplício:
- Ai... Ai... Ai...Ui...Tô aqui desgraçado! Merda! Quebrei meu braço feda puta! - praguejou Duí estatelado no chão entre as ripas quebradas das caixas velhas do Zé Camargos, a velha lona de caminhão do Serafim e a dor só sua de um braço quebrado, da alma estilhaçada e do orgulho irremediavelmente ferido mais uma vez.
Não fora, novamente!

E nos dias que se seguiram, voltaríamos a vê-lo sentado à frente da casa, com o mesmo olhar triste, a mesma postura reflexiva, agora com uma tipóia no braço, a tinta vermelha de mercúrio sobre as escoriações, e o pensamento fixo de conseguir alguma coisa... “Algum dia!”

Um comentário:

  1. A concretização do fracasso é sempre dolorida, mesmo quando já esperada. Ficamos sempre até o último momento acreditando no improvável, desejando sentir o sabor doce de vingança que o sucesso traria, e que explodiria em forma de exclamação: "chupa desgraçado!". É este desejo que move a humanidade.

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