domingo, 5 de dezembro de 2010

Cofres, catedrais...

Escrito em 2002.
Para Toninho Horta.

E num solavanco repentino acordou como se lhe faltasse o chão, voltando-se pela janela arredondada do avião para o desenho irregular da cidade que trazia alguma ordem e simetria - paradoxalmente - do retângulo negro que delimitava o terreno de algum cemitério metropolitano.
A queda do sono causou-lhe um calafrio de morte, misturado à perplexidade da imagem inusitada dos mausoléus de mármore negro. O avião estabilizou-se depois e o comandante informou a autorização para pouso na Pampulha. Contudo, ficara o registro, a imagem pendurada na parede de seus recorrentes medos.

Voar era a contradição de sua alma mineira: o apego provinciano às coisas da terra contra os devaneios e sonhos de rompimento e liberdade. Embora não se sentisse totalmente seguro sobre as asas e turbinas da nave, carregava uma serenidade estóica para as viagens das quais não podia evitar o transporte aéreo. Excitava-o a dicotomia de sua personalidade mutante.

Desceu da aeronave e buscou num gesto autômato algum rosto conhecido no terraço do aeroporto, mesmo sabendo que ninguém o esperava. Era mais uma semana oca movida pela roda de seus descaminhos, pela subsistência da qual havia banido seus sonhos.
Quem nunca se sentiu assim? Quem? Quem nunca chorou solitário dos pedaços de si largados pelo caminho, das lembranças de seus sonhos mais recônditos?
É uma chaga, dessas que corroem conquanto mantêm-nos de pé, zumbis mortos vivos presos às lembranças do que fomos, ou deveríamos ter sido. A frustração que advém de tudo ainda é pior, destila outras faces de nós que não são menos feias que a mágoa, o rancor, o ódio e a inveja que acabamos por inocular por vezes em todos com quem existimos.
Mas "os sonhos não envelhecem"...
Deparou-se consigo numa esquina. Altivo, viril e animado, pareceu-se 15 anos mais jovem. Os velhos sonhos, as antigas esperanças arrancaram-lhe lágrimas e uma sensação de fracasso e arrependimento. Todavia estava ali, a um passo de um abraço, do reencontro com suas velhas intenções e causas. Como seria reencontrar-se 20 anos depois? Estaríamos diante de um estranho, algum jovem inconseqüente com a pretensão de mudar tudo? Era ele mesmo, frondoso até, exibindo um charme que não conseguia ver mais em si mesmo naqueles dias difíceis. "O que fiz dos meus sonhos, onde foi que eu perdi..."

A frustração obrigava-o em vão a tentar estabelecer uma conexão, uma ponte entre seus anos matinais e o peso da idade que carregava agora. Era uma sensação estranha, uma ressaca, ressaca de si mesmo. Puxou assunto com o motorista do táxi apenas para fugir de seus fantasmas:
- Está frio aqui hem?
- É. Esfriou na Quarta-feira. Quinta levei um passageiro à Praça do Papa e o vento frio me deixou resfriado(...)
Embora o motorista continuasse falando, dando novos rumos à prosa, perdeu-se novamente observando a geografia da cidade. Caminhos que conhecia bem, rotas delineadas na memória de seus 35 anos. Pampulha, Mineirão, as novas construções e lugares que outrora venceram a especulação imobiliária agora sucumbidos a prédios, shoppings, casas. Ainda assim era uma sensação doce, rever as ruas como corredores de sua casa, prédios e casas como móveis cuidadosamente colocados por algum capricho de decoração. Era bom voltar.

De repente, como na perda de sustentação pouco antes do pouso, faltou-lhe novamente o chão, só que desta vez num solavanco de vida soprado pelo ar na voz de Lô Borges a cantarolar as primeiras frases de Clube da Esquina II: “Porque se chamava moço/Também se chamava estrada/Viagem de ventania..."
E como empurrado pela multidão na saída das arquibancadas num dia de Atlético e Cruzeiro, soltou a voz compelido pelos acordes da música que não lhe davam outra alternativa senão fazer dueto com Lô uma oitava abaixo: “E basta contar compasso/E basta contar consigo/Que a chama não tem pavio...”
O motorista ainda tentou emitir algum comentário, porém, como não obteve resposta, calou-se.

Passou pelos rios de asfalto e gente, esquinas mais de um milhão e quis ver então a gente, gente, gente... Seguiu... Ele e Lô encerraram - "E lá se vai, mais um dia..." - e como num milagre não sentia mais o peso da melancolia que o seguira até ali. O Grand Finale consumou-se num pedido ao motorista para que parasse no primeiro bar que avistasse na Avenida Catalão.
Desceu do carro, pediu uma cerveja e bebeu como se fosse a última, enquanto o táxi o aguardava na porta. Noutro gesto incontido arremeteu o copo alçando-o a todos no bar:
- Saúde!!! - gritou convicto. Bebeu quase num gole, colocando o copo sobre o balcão com decisão e força. Pagou a cerveja e sem esperar o troco saiu trotando em direção ao carro a cantarolar Minas. Abriu a porta do táxi e pouco antes de entrar estacou pra pensar uma rajada de vento que soprava forte. Cheiro de gentes, lugares e tempos, a memória olfativa de algumas praças, catedrais e becos, como a luz das estrelas trazendo o retrato do início do universo em seu longo trajeto.
Cantou junto do vento o cheiro de Minas... seu cheiro, graças a Deus!!!
"Oh! Minas Gerais, um caminhão.
Leva quem ficou por vinte anos ou mais.
Eu iria a pé, oh meu amor.
Eu iria até, meu pai, sem um tostão.
Em Minas Gerais, alegria é guardada em Cofres, Catedrais...” [1]

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[1] Aqui oh! - Toninho Horta e Fernando Brant

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