quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Sati

Dia ensolarado mas de um sol sonso, a temperatura teimosa recusando-se a passar dos quinze graus, como de costume. Acordou tarde, já dolorida do ócio autoinflingido há meses, quando reconstituiu num átimo sua jornada por entre as horas: do lixo da TV aos livros dispersos na casa, na cabeceira da cama, o iPod, as idas ao banheiro, à cozinha, o transe dos sonhos e pesadelos, o laptop, um suco, uma maçã... suas conversas imaginárias com Arendt, com quem dividia o fato de também ter lido a 'Crítica da Razão Pura' ainda na tenra juventude, ter sido existencialista, depois...
Tais conversas às vezes estendidas por horas. Esse talvez o último indício - inquestionável - de que ainda não morrera, porque a loucura é traço derradeiro dos vivos.
Alongou-se dolorida, ao mesmo tempo em que tomava a não menos dolorosa decisão de sair da cama, ou daquela ilha em que invariavelmente transformara seu quarto há quase um ano, onde trancafiava-se todas as vezes que alguém mais vinha pôr alguma ordem na casa, cuidar dos suprimentos, roupas, contas.
Livros, pratos, restos de frutas, copos, roupas alçadas a esmo, todos amigos fiéis de sua reclusão autoimolada.
Mas diferente de Sati, preferia a cama, os livros e a solidão à fogueira.
Pôs-se de pé e dirigiu-se ao banheiro. Um banho, os dentes, roupa limpa, iPod no ouvido, precipitou-se na rua, então, pela primeira vez em quase onze meses. Andou perdida por entre a Marechal Deodoro, Visconde, Desembargador. "Por que diabos todas as ruas têm esses nomes?" ... ao mesmo tempo em que Lô soprava-lhe no ouvido 'Ruas da Cidade', "Guiacurus Caetés Goitacazes/Tupinambás Aimorés/Todos no chão/Guajajaras Tamoios Tapuias/Todos Timbiras Tupis/Todos no chão/A parede das ruas/Não devolveu/Os abismos que se rolou/Horizonte perdido no meio da selva/Cresceu o arraial"[1].
Não era seu arraial, todavia. Havia se mudado depois do casamento acompanhando o marido de volta ao Sul do país. Foram anos de paz, felicidade. Mas tudo findou num mal derradeiro, um ano de desespero, numa coleção de pequenas tristezas e vicissitudes que mudaram de vez sua perspectiva.
Depois da morte seu isolamento congelou todas as antigas amizades, menos Carla, que ainda cuidava dela sem mais questionar, ou tentar demovê-la daquele luto insano.

Subiu a Desembargador e avistou o desenho dos postes clássicos de iluminação delineando a rua por entre a calçada, árvores e prédios. Na esquina com a Rua Brigadeiro Franco, sinal ainda aberto para os carros. Aumentou o volume, fechou os olhos... atravessou. Deslindara o problema filosófico mais sério para Camus, custara-lhe quase onze meses: sua vida era um absurdo.
Alcançaria o outro lado? Afundou-se na música e preferiu evaporar ali mesmo, transmutada na essência do ato, enquanto ainda caminhava.

Nunca se saberá.
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[1] Ruas da Cidade - Lô e Márcio Borges

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