terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Revolução

A multidão o perseguia desde a praça do Gonçalo, onde alguém vislumbrara seu disfarce gritando:
-  É ele… é ele.
Após desvencilhar-se do algoz delator, descambou pelo beco das irmãs como um caminhão sem freio. Tomou a proa rumo ao rio e teimou decidido até ouvir novamente o rugido da massa enlouquecida saída do beco, que como um rebenque impeliu-o a pular a cerca das terras de Zé Balaio e embrenhar-se desnorteado pelo mato. Desejou num átimo ser um camaleão, ter o poder de camuflar-se; mimetizado em pequizeiro, poderia até deixar passar a sanha de linchadores e fugir seguro, após aquele deslizamento de gente. Apenas um devaneio de segundos, interrompido pela realidade física do flagelo impingido ora pela faca do capim ora pelo chicote das árvores do cerrado a esticarem os galhos como pequenas foices. Aroeiras, braúnas, cagaitas, buritis, lobeiras, juremas, todas impondo-lhe lanhos na pele, sulcos paralelos, transversais, pequenos regatos de sangue fazendo as vezes da pintura de guerra dos botocudos, outrora os grandes guerreiros da região. Praguejou contra todas as ramagens a açoitá-lo, até contra os ipês que outrora defendera da ignorância local corrompida pelo dinheiro das energéticas, agora nada mais que muralhas vivas surgidas do nada e postadas em seu caminho como os zagueiros das peladas na sementeira, autores descuidados do quadro de cicatrizes na canela que contavam algumas das histórias de sua infância no morro da viúva. Ingratos, mesmo com suas flores amarelas, roxas, a embargarem sua fuga sem dar-lhe o direito à voz. Tudo em vão. A natureza também parecia ter-lhe selado a sentença, ou talvez, como a maioria da alcatéia humana que o perseguia, fora corrompida pelo conluio do medo e da manipulação. Delirava até, sob as agruras da fuga. Mas antes de perder-se, absolveu a natureza, mesmo antes que tivesse novamente razão para revolta quando o mundo pareceu fechar-se naquele desfiladeiro à esquerda, onde ele, como Crasso, ainda acabaria emboscado ao sabor da sanha de pontapés, murros e pedras dos agora inimigos. 
Guiado aleatoriamente pelas possibilidades do terreno, apenas tentava distanciar-se sem pensar daquele latido intermitente dos cães humanos em seu encalço. Tomara, todavia, o pior caminho. Porém, a tarde já velha ainda deu-lhe, por instantes, a esperança de lograr a fuga, na cegueira escura da noite. Mas não era para ser. Subitamente, foi abalroado em seu tropel por mais um choque, algo ou alguém lançado contra seu corpo vindo sei lá de onde. Descarrilaram, ambos, morro abaixo num amontoado de mãos, socos e safanões rolando sobre si mesmos como uma roldana louca que terminaria desvencilhando-se à beira do barranco, a um metro da água do Fanado. Sentia-se moído, quebrado, como se não fosse mais possível equilibrar-se de pé. E não era. Notou, desoladamente, antes pelo desenho do osso quebrado proeminente sob a pele da perna que pela dor, já que inebriado pela semi-consciência, que o fim chegara. Estava acuado e vislumbrou seu predador. Era Lecopré, agora de pé a sacudir a sujeira da roupa, recompor-se, como se para ele o tombo não tivesse sido mais que uma brincadeira infantil. Viu sua silhueta aumentar de tamanho como uma visão do inferno, uma plêiade de pernas, braços, cabeças, a massa ensandecida que abrira picada precipitando-se por detrás dele transmutando-o naquele homem monstro. Os gritos e as palavras de ordem o arrancaram do transe, fizeram-lhe notar que a besta permanecia acéfala, ainda que parida de sua leitura contumaz da mitologia ou da alucinação do tombo, o amontoado de homens fundidos naquela fera não passava de células desarticuladas, ensandecidas.  
A sevícia então nem doía mais. De alguma forma, terminara desplugado do corpo e sentia-se como um observador externo, flutuando sobre de si mesmo. Via toda a barbárie de maneira impessoal, como se já estivesse a atravessar o Aqueronte, rumo ao primeiro círculo do inferno. Chegou a notar que até velhos amigos não se furtavam de desferir-lhe chutes, socos e cusparadas, en passant. Eram todos parte daquela besta viva feita de células descerebradas, não mais que um algoz impiedoso e cruel comandado pela ira, incitado pelas circunstâncias. Lembrava-se perfeitamente que alguns dos carrascos de agora, individualmente, já não carregavam traços que pudessem separá-los de macacos ou cães de guarda. Acuados pelo medo e ignorância, tornaram-se massa de manobra e peões de um jogo do qual nem conheciam todas as peças, quanto mais as regras.
Já não importava. Arrastado para fora do mato - ou o que sobrara dele - chegou à rua sentindo-se aos pedaços, e talvez estivesse mesmo despedaçado... já que não conseguia mais definir. 
Como butim e símbolo daquela revolução nefanda, foi levado ao comitê central ainda a tempo de ser mais uma vez julgado por traição num tribunal improvisado e impingido como o único responsável pelas mazelas das quais tivera, até ali, sido apenas a vítima. Não entendia mesmo aquela lógica, razão pela qual transformara-se em estorvo para os demais outrora irmãos de arma.
Morria sob os auspícios daquela revolução que ajudara a deflagrar sob a bandeira da libertação e que agora devolvia-lhe o legado da estupidez e do otimismo insano: a utopia cega sempre voltar-se-ia contra os sonhadores, como um ricochete. Tudo seria apenas questão de tempo até que alguns voltassem a ver-se como homens, enquanto outros, auto-elevados pela soberba à categoria de deuses, provocariam outras revoluções e mortes no seio de seu sonho impossível. 
Homens permaneceriam homens, imperfeitos, e só!

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