sábado, 7 de agosto de 2010

"Pro resto de nossas vidas"


Nossas lembranças não passam de flashes, pedaços isolados de situações, momentos que ficaram por algum motivo congelados na memória.
Como num filme, uma sequência em branco e preto, ainda sigo meu irmão com os olhos pela janela da cozinha, emitindo nossa senha sonora... “qssssssssssssssss", e recebendo a contra senha de volta, até mesmo depois que o portão se fecha e não o vejo mais... "qsssssssss qsssssssssss".

Precipitou-se na rua uma noite. Nunca mais voltou pra casa.

(...)


Ainda falo com Fabeca na cozinha da casa da Rua do Fogo, e me junto a ele numa pinga com jurubeba num coité (aquele que o Zé herdou, levando de brinde o DNA daquelas noites), vaticinada depois por sua saudação de boa noite:
- Essa é pra respaldar.

Tião e eu ainda vamos até o corredor conferir a causa do barulho de uma batida sêca na parede. Lado a lado, vemos Fabeca com um ombro na parede, inclinado, se recompor e voltar-se pra trás pra tentar salvar a reputação:
- É... Acho que eu tô é bêbado. Desaparecendo no quarto logo depois.
Nós somos só riso.

Ainda trombo com Tião na porta de entrada da casa numa noite de carnaval. Ele excitado com os nossos 20 anos, deitado com uma menina no sofá não se importa com minha presença. Bate o pé no suporte da samambaia em frente da janela e o barulho do vidro estilhaçando acorda a casa. Correria...Viramos os três no Beco de Lêra, não sem que antes eu vire para trás e divise Fabeca de pijama à caça dos invasores. Sem óculos.
Estávamos a salvo.
No dia seguinte, na mesa do café, demonstrávamos surpresa e uma certa preocupação com a escalada da violência, embora a porta da sala teimasse em permanecer destrancada. Sempre.

Ainda vejo Fabeca subir a praça da Loja do Mário, virar à direita e descer  a rua pra inspecionar o muro dos fundos,  no dia seguinte ao roubo dos frangos da criação no quintal.
Sentados em frente à loja, vimos sua volta desolada e a constatação de que fora roubo, fuga teria sido impossível com o muro ainda intacto.
Desistiu da criação naquele dia mesmo, imputando-nos um remorso irreversível.
Ainda tentaria confrontar-nos uma vez mais quando na viagem para Diamantina no Opala 76, pra buscar a Flávia, mudou o rumo da prosa para o caso dos frangos - logo depois do Vicente Francisco - à queima roupa:
- Foi você Fernando?
- Não pai...Quê isso.
E eu me segurando atrás pra não explodir em gargalhadas delatando nossa empresa.
Como filho do irmão mais novo, contava com a cumplicidade e apoio do meu pai, meu comparsa da vida toda.

Tenho certeza que Fabeca sabia. Sempre soube. O resto era manter a rigidez e não macular a imagem diante do filho. No fundo, sempre soube. Relevava sem revelar.

Ainda vejo o Tião no Hospital Biocor explodir em lágrimas logo depois de o ZéMota entrar pra sala de cirurgia, para a retirada de um rim canceroso.
Palavras pra quê? Irmãos.

(...)

E eu perdido em minha solidão de crenças, de religiões, na certeza de que o fim é só o fim.
Não há mais, além. Não há.

Então mergulho desesperado na memória, em preto e branco, em infinitos takes como num filme mudo do Chaplin, onde não canso de repetir as cenas, centenas de vezes, com a sensação de que sempre é a primeira vez. 
Lá reencontro todos, face a face, eternos, enquanto a lucidez me brindar ou o ar ainda escoar de meus pulmões.

Queria eu partilhar alguns momentos que vi... Projetar minha memória numa tela... Lá... Lá onde estamos todos, pra sempre, pro resto de nossas vidas, salvos do tempo, salvos do fim.
Salvos, enfim!!!

2 comentários:

  1. Pro restos de nossas vidas... Palavras para que? Irmãos.( sem palavras... repentindo as suas frases)
    Bjs de boa noite e de irmã
    Flavia Mota

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  2. Meu caro, meu irmão.
    Acredito que nestas memórias permanecemos. Somos "vivos" enquanto algum tião lembrar da gente.
    Seu Fabeca e Tião estão vivos nas nossas memórias.
    "Pro restos de nossas vidas ... Palavras pra que? Irmãos"

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